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terça-feira, 14 de setembro de 2010

PROSTITUIÇÃO e BEATITUDE: a impropriedade do próprio corpo

Serena e deliciosa - 39 anos - Jardins
“Tenho 39 anos, corpinho de 25 e bumbum de 18 anos. Completa ...”
São Paulo
Brasil
“Nada me resta senão me perder em você,
Senão morrer um pouco,
Senão gozar sem saber do que se goza”.
Santa Tereza D’Ávila com adaptação de Murilo Salles

Dando continuidade a um tema sobre o qual venho me debruçando nos últimos tempos a saber, a feminilidade, e partindo da escuta e observação de algumas mulheres no consultório, surgiu a necessidade de tentar aprofundar os estudos acerca do gozo e suas relações com a  prostituição e a beatitude. Por serem temas tão vastos e polêmicos decidi recorrer às suas definições.
Prostituição pode ser definida como a troca consciente de favores sexuais por interesses não sentimentais ou afetivos. Apesar de comumente a prostituição consistir numa relação de troca entre sexo e dinheiro, esta não é uma regra. Pode-se trocar relações sexuais por favorecimento profissional, por bens materiais (incluindo-se o dinheiro), por informação, etc. A prostituição caracteriza-se também pela venda do corpo, seja em fotos ou filmes em que se deixam à mostra partes íntimas do corpo. 

Beatitude é considerada 1. Bem-aventurança. 2. Gozo de alma dos que se absorvem em contemplações místicas. 3. Bem-estar.
           
Comecemos pelo gozo-do-corpo, o gozo do ser pela imagem do outro, ou de si, tomada especularmente. Nessa passagem do ser ao ter, há a divisão do sujeito em dois tempos lógicos com os movimentos centrípeto e centrífugo, considerados fenda (eu ideal) e refenda (ideal de eu).

A importância dessa passagem é apontada por Lacan como diretriz na clínica para podermos tocar o real do sintoma a partir da fala, pois havendo falta no campo do Outro, o sujeito poderá ter acesso ao chamado gozo fálico.

Lacan no Seminário 20 mais, ainda, diz haver um gozo d’A Mulher, um gozo dela, desse ela que não existe e não significa nada. “Há um gozo dela sobre o qual talvez ela mesma não saiba nada a não ser o que experimenta – isto ela sabe”. Exatamente por ser não-toda, a mulher tem um gozo suplementar. Ele enfatiza a palavra suplementar, pois se fosse complementar cairíamos no todo e alerta para a relação ao designado gozo fálico. Esse gozo suplementar é denominado gozo Outro ou Outro gozo. Contudo, existem homens aí posicionados e a experimentarem a idéia de um gozo mais além. São os chamados místicos. A experiência mística é uma forma de escapar a esse amor incompleto.

Santa Tereza D’Ávila, a quem encontramos sob a forma de uma estátua do escultor Bernini a ilustrar a capa do Seminário 20, é uma das místicas estudadas por Lacan. Ela viveu no século XVI e foi personalidade inquieta, reformadora incansável e fundadora de conventos carmelitas. Escreveu vários livros em poesia e prosa. Tereza não compreende seus arroubos. Só sabe que goza. É de seu êxtase que ela fala na famosa passagem proferida por Lacan no Encore e eternizada pelo escultor Bernini. Assim verbaliza:

“Vi um anjo perto de mim, do lado esquerdo... não era grande, mas pequeno e muito belo... e o rosto tão iluminado que deveria ser dos anjos muito próximos a Deus. Via-lhe nas mãos um comprido dardo de ouro. Na ponta, julguei haver um pouco de fogo. Parecia que ele o metia pelo meu coração adentro, de modo que chegava às entranhas; tinha eu a impressão que as levava consigo, deixando-me toda abrasada em grande amor de Deus. Era tão intensa a dor que me fazia soltar gemidos e tão excessiva a suavidade que me deixava aquela dor infinita...”
            A partir da escultura de Bernini, irrompeu inesperadamente nos muros de Lisboa, em 1994, esse grafito de Santa Tereza D'Ávila como expressão visual espontânea nomeadamente num dos suportes do viaduto de Alcântara.
Com relação ao gozo-do-Outro, vemos o sacrifício do corpo por não se saber as razões pelas quais goza. É o gozo do corpo, onde o corpo goza de si mesmo. Um gozo simbolizado pelo corpo não sendo signo do amor. Todo excesso de tensão participa do gozo-do-Outro como manifestação de sofrimento, desde a dor mais refinada até as dores lancinantes das patologias orgânicas. Importante ressaltar serem as variações da dor tributárias da subjetividade.

            Pensemos aqui na prostituição e nas mulheres submetidas aos maus tratos e sua relação com esse gozo. Um corpo entregue ao Outro, sem identidade e sem consistência. Um corpo sem identidade, o corpo físico dedutível do gozo primário do Outro Real e representado pelo corpo materno, naturalmente complacente às necessidades do bebê. Daí podermos pensar numa falha na constituição do sujeito e consequente dificuldade de articular-se na linguagem e na enunciação.

            Na clínica surgem os obstáculos ao tratamento e a angústia avassaladora a permear as falas desses assujeitados. A definição de prostituição anteriormente descrita,  aponta uma relação de comercialização de um corpo para além do monetário, mesmo adquirindo um valor de mercado outros elementos poderão entrar em cena como puros valores significantes de um corpo preso ao sentido de circular. Não será daí o ponto de partida para o analista,  pensar os elementos significantes e circulantes como se fossem “o fio da meada”?

            Mas e as beatas ou simplesmente as analisantes convictas de estarem subjugadas à vontade divina, como tratá-las sendo a fé a norteadora de suas vidas? Parece ser exatamente o ato da fé responsável pela desapropriação do corpo, fazendo passar o Outro pelo próprio corpo. E por que isso ocorre? Elas talvez queiram o gozo perdido do pai ideal, que já está morto. Para vislumbrá-lo é preciso ir além da relação fantasmática com seu parceiro masculino. É preciso um atravessamento. E onde isso se encontra? Sendo o significante Outro do amor um amante castrado ou um homem morto, surge a figura de Deus a provocar a adoração feminina. 
            Como ponto de abertura, trago a impropriedade do próprio corpo podendo ser observada tanto na prostituição como na beatitude, mas a partir de uma conceitualização mais ampla e sem deixar de resguardar as diferenças. Corpos desapropriados seja para não enlouquecerem, fazendo de uma impossibilidade de apropriação uma necessidade vital, seja por uma convicção respaldada na fé como meio de empréstimo ao Outro. Corpos sem propriedade, corpos clamando por reconhecimento para poderem se apropriar do próprio corpo, fazendo dele um corpo próprio.
            Para finalizar, tomo como referência o filme Nome Próprio de Murilo Salles rico na abordagem do universo feminino, citando um trecho da protagonista Leandra Leal na pele de Camila Lopes:
Hoje vou procurar a palavra que se perdeu, que escapuliu entre meus dedos, que escorreu por minhas mãos. Eu hoje vou conter nas letras esse fluxo que não para de me levar pra longe daqui. Eu hoje vou ficar aqui quieta, enquanto frases se formam, enquanto parágrafos inteiros se fixam na tela. Alguns fogem. E eu deixo que fujam porque sei que posso recuperá-los, melhores, adiante. Não me desespero mais. Encontrei o leito por onde escoar o meu excesso”.

                Segundo Murilo, o que dá corpo ao corpo de Camila são suas palavras, pois nos longos e áridos momentos em que ela não está escrevendo o seu corpo é um corpo nu, despido de palavras, um amontoado de carne e ossos e por isso se apresenta tão vulnerável e indefesa.  Ele nos diz:
            “O corpo apodrece. Ossos e músculos são muito frágeis, não têm vigor! Não sustentam o pensamento, nem sequer uma única dúvida existencial”. 
E o diretor do filme complementa:
“Ainda por cima, hoje, tudo é um grande texto e o que interessa é o sentido que damos às nossas re-escrituras, como determinamos nossas escolhas. Não interessa se fundadas na vida real ou imaginada, pois a operação da escrita é uma operação de ficção, você exerce o poder do narrar, que é sempre uma escolha, um recorte, uma visão de mundo, uma possessão. Mas, filme pronto, tudo isso passou a me inquietar. O nome do filme me trazia um desconforto ético, porque também não era uma história, era só ficção. Descobri ao final de tudo que estava procurando um Nome Próprio”.
            Não será exatamente essa a função da análise, possibilitar ao sujeito uma narração da ficção da sua história, onde a partir do seu próprio nome poderá se encontrar com o seu Nome Próprio, para operar assim a passagem do próprio corpo para um Corpo Próprio?

Um comentário:

  1. As palavras de Mônica atravessaram meu corpo
    Lacaniantemente, e me colocaram, nú ,lutando contra o verbo,impotente às letras,cúmplice
    do pincél e da poeta...

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